Manter e abrir mão: Gerindo mudanças nas empresas familiares

Professor John A. Davis
Founder and Chairman, Cambridge Family Enterprise Group; Senior Lecturer and Faculty Director, Family Enterprise Programs, MIT Sloan School of Management
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Você já notou que os membros das gerações sênior e júnior gostam de falar sobre transição geracional usando dois termos bem diferentes? A geração na liderança gosta de usar o termo continuidade (como em planejamento de continuidade), enquanto a geração nova fala sobre sucessão (como em gestão de sucessão). Concentrar-se em diferentes aspectos de uma transição geracional é perfeitamente compreensível. A geração sênior, tendo investido grande parte de sua vida em construir a empresa, sua cultura e seus ativos, quer dar continuidade àquilo que funciona e ao qual está vinculada. A geração júnior quer ter sua vez no leme, para modernizar a empresa e experimentar suas ideias. Portanto, a geração júnior tende a enfatizar mudanças.

Mas concentrar-se em um dos termos ou temas e não reconhecer a importância do outro pode levar as duas gerações a falar do passado, assim como a frustrar-se e exasperar-se mutuamente. Não convém desrespeitar o outro lado num processo em que ambos os lados necessitam do sucesso mútuo. Costumo recomendar à geração seguinte que concentre a conversa sobre a transição primeiro em continuidade – o que deve permanecer inalterado (tranquilizando assim a geração sênior), para depois voltar a atenção àquilo que precisa mudar. Quando a geração sênior se convence de que a geração júnior deseja preservar os elementos centrais da empresa familiar, a primeira sente-se mais respeitada e mais aberta a discutir planos de mudanças para a empresa.

É óbvio que tanto o tema de continuidade como o de sucessão são fundamentais para as transições geracionais. Ao transferir responsabilidade e autoridade de uma geração para outra, há elementos que normalmente se deseja ou se deve manter inalterados: os valores centrais (ou a maioria deles) de uma empresa de sucesso devem ser normalmente preservados e sua reputação deve ser protegida; e os relacionamentos com stakeholders leais da empresa devem ter continuidade.

Há então elementos que devem mudar: certas pessoas precisam mudar de cargo no topo da empresa e a propriedade precisa mudar de mãos; e certas estratégias e práticas de gestão podem requerer atualização. E pode-se ainda querer ou precisar alterar certos fatores, tal como a imagem da empresa no mercado.

O observador de transições geracionais em uma empresa familiar pode perceber que esses dois temas opostos – manter certos elementos da mesma forma e mudar outros – são complementares. De fato, mudança efetiva nunca é mudança no atacado. Sempre que o regime seguinte tenta mudar tudo quando toma o poder, geralmente fracassa – e os esforços para mudar significativamente a empresa, a família ou mesmo a sociedade são menos eficazes.

Muitos aspectos de uma empresa ou sociedade existem porque funcionam e as pessoas gostam dessas características de sua organização. O ditado ‘Não jogue o bebê junto com a água do banho' é bem aplicado aqui. Eis porque ideólogos em governos e empresas são perigosos. Eles simplesmente não entendem esse princípio: mudar com sucesso qualquer organização – empresa, família ou sociedade – envolve manter elementos importantes para a continuidade e abrir mão daqueles que devem mudar. Saber o que manter e o que abandonar é o verdadeiro desafio.

Empresas familiares de alto desempenho são inquestionavelmente melhores ao se apegar a certos fatores importantes e ao abrir mão de outros que podem comprometer seu avanço. Elas costumam escolher sucessores, por exemplo, que representam os valores essenciais da família e da empresa e, ao mesmo tempo, são agentes de mudança determinados. A geração na liderança, em tais situações, capacita os membros da geração seguinte a buscar atividades que possam ajudar a empresa a crescer e se adaptar. A geração seguinte mostra respeito pela base de valores e pelas realizações da geração sênior e de outros ancestrais.

Um dos melhores exemplos que já vi dessa estrutura é a Corporação Kikkoman, presente há 16 gerações no Japão (como produtora de molho de soja e outros molhos), sob propriedade e liderança da família Mogi. Os membros da geração seguinte são testados quanto à sua capacidade de operar as divisões da empresa não apenas com sucesso, mas também para desenvolver novas atividades de negócios e liderar a empresa em novas direções. Por gerações, os sucessores da família Mogi têm sido o que chamo de agentes de mudança leais, que parecem voltados à inovação e adaptação, ao mesmo tempo em que protegem os valores essenciais da família e da empresa. Bons exemplos de sucessores que são também agentes de mudança leais, no Brasil, incluem André Johannpeter (Gerdau), Alexandre Birman (Arezzo) e Eduardo Melzer (RBS).

Deve-se considerar outro aspecto importante do sucesso das famílias e empresas familiares: construir e sustentar um legado familiar saudável. O legado de uma família consiste em seus ativos físicos (empresa operacional, ativos financeiros e ativos pessoais, tais como residências), assim como suas habilidades, valores, entendimentos, relacionamentos, reputação e alianças importantes.

Uma família com habilidades, bons relacionamentos, boa ética de trabalho, reputação e fortes alianças pode muitas vezes se recuperar da perda de grande parte de sua riqueza material. Uma família com poucas habilidades, relacionamentos fracos, valores e reputação em decadência e alianças deficientes pode perder muito da sua riqueza material, com rapidez, e talvez não seja capaz de regenerá-la. O legado familiar mais resistente dispõe de recursos materiais e ativos imateriais que permitem à família continuar com seu bom desempenho.

O legado das famílias é formado através de um processo de manter e abrir mão, envolvendo as gerações sênior e júnior. A geração sênior não costuma construir um legado para em seguida passá-lo à geração seguinte – embora, infelizmente, isto seja frequentemente caracterizado dessa forma. Ambas as gerações (três gerações, em geral) estão normalmente engajadas em expandir, consumir ou perder bens materiais, em adquirir habilidades ou não, em construir ou enfraquecer relacionamentos, alianças e reputação e em redefinir os valores familiares.

Em algum ponto da vida da família, a responsabilidade pelo legado familiar desloca-se mais para a geração júnior e esta começa então a renovar tal legado com a geração seguinte. A formação do legado é, na verdade, um processo maravilhosamente fluido e confuso, que envolve o fortalecimento da reputação e das relações-chave da família – recorrendo a habilidades, valores, entendimentos e recursos que promovem os interesses da família e abandonando elementos que já não atendem mais a família.

Saber distinguir entre esses elementos, ou seja, quais aspectos do legado familiar estão ajudando a família a manter o sucesso e do que a família precisa abrir mão, envolve permanecer sintonizado com o setor dos negócios e o ambiente familiar, além de desafiar e mudar o que precisa ser mudado, no momento certo.

Com o tempo, todas as famílias e empresas familiares precisam mudar alguns aspectos de seu legado. Nunca vi uma família com sucesso de longo prazo que não alterasse alguma parte de seu legado. É claro que desafiar algo que a família sempre valorizou (o setor de negócios em a empresa se encontra, algumas alianças já feitas, certos valores e crenças) costuma provocar um confronto de ideias dentro da família e da empresa.

Já testemunhei várias famílias, por exemplo, que desafiaram e mudaram a forma como as mulheres são tratadas nas empresas familiares. Esses confrontos são importantes e saudáveis, desde que sejam respeitosos. Em famílias e empresas familiares saudáveis, o poder familiar e empresarial acaba passando às pessoas com ideias novas e vencedoras na própria família. As famílias mais esclarecidas entendem que, para que o legado da família cresça e permaneça adaptável, a geração seguinte deve ter poder para testar suas habilidades e valores e assim mudar aquilo que precisa ser mudado. Ao mesmo tempo, especialmente o sucessor da geração seguinte da família, deve entender quais partes do legado familiar existente são úteis para o futuro da empresa familiar.

Famílias e empresas familiares são mais naturalmente propensas a se agarrar do que a abandonar coisas, tornando as mudanças mais difíceis e complicadas, tanto em famílias como em empresas familiares. As famílias sentem-se ainda menos confortáveis em desafiar ideias e pessoas poderosas (como os pais).

Sempre ajuda quando membros poderosos da família são defensores da mudança (e, às vezes, são mesmo). Independentemente de seu apoio à mudança, quanto mais os membros da família e a empresa familiar forem preparados para a necessidade de mudar regularmente e quanto mais for possível discutir mudança de modo respeitoso, mais bem-sucedida será a empresa. Convém lembrar estes três ingredientes fundamentais, que tornam a mudança mais fácil:

  1. Manter os olhos da família no prêmio final – concentrar-se no que se está tentando realizar, em sua missão. A família Ferragamo, da Itália, diz que observa sua empresa através de um telescópio e não um microscópio. Em outras palavras, olha para as grandes coisas que deseja fazer e não para as pequenas coisas que estão sempre lá e podem dividir a família.
  2. Permanecer observando o setor dos negócios ou ambiente da família, para enxergar os desafios à frente. É preciso ainda observar a família e a empresa, a fim de entender seus pontos fortes e fracos. Deve-se ter consultores (e outros profissionais) que digam a verdade sobre o que é preciso fazer para se manter bem-sucedido. Deve-se fazer com que os grupos de discussão e tomada de decisões (diretorias, conselhos de família) se sintam livres a desafiar o modo como as coisas são feitas atualmente.
  3. Iniciar discussões sobre mudanças importantes, reconhecendo primeiro o que se deseja manter. Deve-se honrar o que e quem contribuiu para o sucesso, mesmo que essas ideias e pessoas precisem agora mudar. Em seguida, deve-se avançar para discutir o que deve ser mudado, como adaptação às novas condições. É preciso lembrar, a todas as partes, que sucesso persistente é o maior elogio que poderiam receber.

 

John Davis, CFEG
Founder and Chairman, Cambridge Family Enterprise Group; Senior Lecturer and Faculty Director, Family Enterprise Programs, MIT Sloan School of Management

John A. Davis is a globally recognized pioneer and authority on family enterprise, family wealth, and the family office. He is a researcher, educator, author, architect of the field’s most impactful conceptual frameworks, and advisor to leading families around the world. He leads the family enterprise programs at MIT Sloan. To follow his writing and speaking, visit johndavis.com and twitter @ProfJohnDavis.